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A hora do mercado de créditos de carbono no Brasil

A pandemia da Covid-19 produziu uma rara oportunidade para os indivíduos, empresas e Estados reavaliarem as suas prioridades e redefinirem as suas expectativas de vida para o futuro próximo. Ao se recolher em distanciamento, a humanidade tornou-se mais consciente de que a mudança climática é real, mas também de que formas alternativas de organizar a produção e o trabalho, com menores emissões e desperdícios, são possíveis e já estão em grande parte ao nosso alcance, exigindo um sacrifício menor do que a absorção dos impactos integrais de uma mudança climática desgovernada[1].

O último relatório do IPCC (AR6 Climate Change 2021), com base em evidências científicas, reconheceu a ação humana como causadora inequívoca das mudanças climáticas[2]. Segundo o mesmo relatório, alguns efeitos já seriam irreversíveis enquanto outros tendem a se agravar na próxima década, causando sérias perdas. A humanidade estaria diante da última oportunidade para adotar medidas urgentes, intensas e continuadas para promover a redução de suas emissões.

Dentre as principais políticas elegíveis para se mitigar as mudanças climáticas, destacam-se a criação e a expansão de mercados de carbono. Essa agenda ganhou forte impulso após o anúncio do Green Deal pela União Europeia e a inauguração do mercado de carbono na China, ambos ocorridos em julho. A COP 26, a ser realizada em novembro em Glasgow, também gera expectativas de novos avanços no arcabouço regulatório internacional sobre esse tema.

Nesse contexto, surgem novos riscos e oportunidades para o Brasil, que poderá finalmente ter nos mercados de crédito de carbono, tanto obrigatórios quanto voluntários, nacionais ou internacionais, importantes aliados para o cumprimento das suas metas de redução de emissões. Vejamos como nos posicionar em face desses eventos e quais podem ser os próximos passos.

Green Deal Europeu

No mês de julho, foi divulgado o detalhamento do Green Deal Europeu (GDE), o qual, caso seja aprovado, representará uma verdadeira revolução no arcabouço regulatório da União Europeia para cumprimento das metas de mitigação dos efeitos da mudança climática, visando a uma redução de 55% de suas emissões de gases de efeito estufa (GEE) até 2030, considerando os padrões de 1990.

Os grandes destaques do GDE foram as propostas de (i) expansão do Sistema de Comércio de Emissões da União Europeia (EU Emissions Trading System – ETS) e redução dos limites de emissão de GEE; (ii) alteração da Diretiva de Tributação da Energia; (iii) instituição do Carbon Border Adjustment Mecanism (CBAM); e (iv) criação do Fundo Social do Clima. Analisemos brevemente esses pontos.

O ETS é um clássico mecanismo de controle e redução de emissões do tipo “cap and trade system” (“sistema de limites e negociação”). Esse sistema se baseia na fixação de quotas de emissão para certos setores econômicos e na permissão para que os agentes participantes negociem suas quotas entre si (sob a forma de créditos), incentivando a redução de emissões, a negociação de excedentes e a aquisição de créditos por aqueles cuja redução por meio de soluções tecnológicas se mostre inviável ou excessivamente onerosa.

Trata-se de um arranjo de mercado que tem a virtude de incentivar que as reduções de emissão sejam implementadas pelos agentes que têm condições de fazê-las com menores custos, reduzindo assim o impacto econômico da transição energética para a sociedade como um todo[3].

Desde 2005, esse sistema foi responsável pela redução de 42% das emissões do bloco associadas a geração de energia e a indústrias eletrointensivas. O GDE deverá expandir o uso desse instrumento a novos setores, retirar os limites gratuitos atualmente concedidos a determinados segmentos e, de forma geral, reduzir as margens de emissão, assim como estabelecer metas progressivas a cada ano, o que tende a ampliar a demanda por créditos de carbono no âmbito do ETS e, eventualmente, também o preço desses ativos (mesmo considerando o mecanismo de estabilização de preços implementado desde 2019).

Já a proposta de alteração da Diretiva de Tributação deverá ajustar a taxação sobre o consumo das fontes de energia às novas metas climáticas da União Europeia, onerando mais os combustíveis de maior emissão de GEE, como também adotando uma tributação baseada em critérios de eficiência energética e poluição.

As alíquotas impostas sobre as diversas fontes de energia passarão a ser expressas em euros/gigajoule de energia produzida (ou seja, €/GJ em vez de €/volume de produto), de modo a propiciar uma estrutura de incentivos mais adequada e aumentar a transparência dos custos ambientais para que os agentes possam fazer escolhas mais conscientes.

Além disso, os obsoletos incentivos fiscais para combustíveis fósseis, não mais justificáveis sob as condições atuais de mudança climática, serão retirados e substituídos pela imposição de alíquotas mínimas em todos os países do bloco, de forma a favorecer os investimentos em fontes de energia renováveis e outras inovações para a transição energética.

O GDE também prevê de forma pioneira a instituição de um mecanismo de ajuste de fronteira (Carbon Border Adjustment Mecanism – CBAM), sob a forma de cobrança de uma tarifa baseada no custo hipotético de carbono sobre produtos importados de países não comprometidos com metas de descarbonização similares às da União Europeia.

A cobrança do CBAM busca equalizar os custos de produção de certos bens importados de países não aderentes, como meio de garantir a igualdade de condições competitivas para os produtores estabelecidos no bloco.

A partir de 2026, o CBAM obrigará os importadores europeus a compensar o custo de carbono desses produtos, mediante a aquisição junto ao governo de certificados que espelharão o preço dos créditos de carbono negociados internamente na União Europeia por intermédio do ETS. Os setores inicialmente afetados serão cimento, ferro/aço, energia elétrica e fertilizantes, mas é provável que esse mecanismo seja também expandido para outros.

O CBAM tende a constituir um típico mecanismo de “carbon club”, nos moldes sugeridos pelo economista William Nordhaus, como forma de estimular a cooperação internacional e superar o problema do free-rider nos acordos climáticos[4].

Contudo, como é comum em toda inovação em matéria de governança, ainda existem muitas dúvidas, seja sobre a sua compatibilidade com as normas internacionais do Acordo de Paris e da Organização Mundial do Comércio, seja sobre os possíveis custos de transação para todos os envolvidos em termos de controle e conformidade.

Para alguns integrantes do European University Institute[5], o CBAM não violaria o princípio das “responsabilidades comuns, porém diferenciadas, e respectivas capacidades”, consagrado no art. 2º do Acordo de Paris, na medida em que o mecanismo contribuiria com os objetivos do próprio acordo ao reduzir o risco de carbon leakage (“vazamento de carbono”) mediante migração da produção para jurisdições mais lenientes como forma de escapar das metas de redução.

O mesmo think tank pondera que o CBAM não constitui um mecanismo protecionista, mas que a União Europeia deve reforçar a sua diplomacia junto à OMC para que esta abra uma discussão sobre como compatibilizar as regras do comércio internacional com as questões de mudanças climáticas e sustentabilidade. Questão ainda mais problemática para o CBAM parece ser como comparar, e classificar, a efetividade das diferentes abordagens adotadas pelos países com políticas para redução de emissões.

A despeito dessas questões, dado o comprometimento da União Europeia com a implementação dessa política e a recente sinalização dos EUA de avaliar a adoção de mecanismos congêneres[6], não parece razoável negligenciar os riscos que essa medida representa para o comércio exterior e as exportações brasileiras em especial.

O GDE também prevê a criação de um Fundo Social do Clima (Social Climate Fund), com o objetivo de proteger os consumidores mais vulneráveis em face do aumento do custo dos bens e serviços que façam uso de fontes e tecnologias mais poluentes.

O Fundo garantirá suporte financeiro às famílias de baixa renda para que possam ter acesso às tecnologias mais limpas e, com isso, também evitar a maior onerosidade associada ao uso de fontes e tecnologias ecologicamente obsoletas.

O Fundo deverá ser reforçado por receitas geradas com a expansão do ETS e pela implantação do CBAM, e será acessível a todos os países da União Europeia de forma a assegurar que nenhum cidadão do bloco seja negativamente afetado pela transição energética.

Mudanças na China e as expectativas para a COP 26

A China, por sua vez, inaugurou em julho na Shanghai Environment and Energy Exchange o seu mercado de carbono, o qual já nasce com a perspectiva de se tornar o maior do mundo em termos de volumes transacionados[7].

Inicialmente, o mecanismo abrangerá somente o setor de geração de energia (ainda muito dependente de combustíveis fósseis), mas deverá se expandir rapidamente para outros segmentos poluentes, à medida que as autoridades chinesas desenvolvam as normas específicas de contabilização e fortaleçam o aparato de fiscalização.

A eficácia do modelo, contudo, dependerá da fixação do custo dos créditos de carbono em patamares suficientes para estimular investimentos que gerem mudanças efetivas nos padrões de emissão.

No plano internacional, também seguem as expectativas em torno da COP 26 a ser realizada em novembro em Glasgow. Espera-se que haja um efetivo avanço na regulamentação do Acordo de Paris, especialmente no que tange ao mecanismo de comércio de emissões previsto no art. 6º, embora algumas controvérsias de índole técnica e a falta de consenso político sobre certos aspectos nucleares ainda ameacem frustrar as expectativas da comunidade internacional.

Sejam quais forem os resultados da COP 26, o fato é que o panorama na Europa, acompanhado pelas novas políticas anunciadas pelos Estados Unidos, e em menor medida na China, aponta para uma tendência irreversível de adoção de medidas de controle e redução de emissões de GEE mais agressivas por parte dos blocos de países desenvolvidos, sob a forma de “carbon clubs”, com potenciais reflexos sobre o comércio internacional e impactos negativos para a competitividade dos países que não adotem metas e mecanismos de controle e redução semelhantes.

Mercados de crédito de carbono no Brasil

Nesse contexto, o Brasil precisa se preparar para acelerar o passo da regulação do seu mercado interno de créditos de carbono, assim como do ajuste do seu sistema tributário, a fim de implementar as suas metas de redução de emissões, independente de eventuais acordos globais, pois a mudança inevitavelmente virá, ainda que por imposição dos grandes mercados consumidores, como o caso europeu já prenuncia.

Atualmente, os mercados de créditos de carbono e demais certificados de redução de emissões no Brasil, à exceção da experiência exitosa do RenovaBio, são em grande parte ainda voluntários e não regulamentados.

Mercado regulado – RenovaBio

O RenovaBio é uma política de controle e redução de emissões no setor de combustíveis, introduzida como reforço ao compromisso voluntário assumido pelo Brasil na COP 21, realizada em Paris em 2015. A política instituída pela Lei nº 13.576/2017 é baseada na fixação de metas individuais anuais de redução de emissões por parte dos distribuidores de combustíveis (art. 7º), a serem atingidas por meio da diminuição da proporção de combustíveis fósseis comercializados e da aquisição de créditos de descarbonização, os denominados “CBIO”.

Os CBIO são originados pelos produtores de biocombustíveis, os quais também são estimulados a aprimorar a eficiência ambiental das suas plantas de produção (conforme a classificação ou rating de eficiência que lhes é atribuído por entidades certificadoras), pois quanto maior a sua eficiência ambiental, maior será o volume de CBIO originado anualmente.

Dessa forma, o arranjo funciona simultaneamente como um incentivo à produção de energia renovável e como um desestímulo ao comércio de combustíveis fósseis por parte dos distribuidores, visto que precisam arcar com o ônus da aquisição dos CBIO e ficam sujeitos a multas em caso de descumprimento das suas metas individuais (art. 9º).

Importante notar que os CBIO não são legalmente enquadrados como ativos financeiros nem valores mobiliários e, portanto, não estão sujeitos à regulação pelo Conselho Monetário Nacional nem pela Comissão de Valores Mobiliários.

Com efeito, a partir da definição do inciso V do art. 5º da Lei nº 13.576/2017, combinada com o § 2º do art. 3º do Regulamento (Decreto nº 9.888/2019), é possível caracterizar os CBIOS como simples títulos de legitimação[8], ou seja, documentos emitidos sob a forma escritural, comprobatórios da titularidade de direitos de índole regulatória e ambiental, representativos de uma tonelada de gás carbônico equivalente para fins de cumprimento das metas de redução de emissões por parte dos distribuidores de combustíveis.

Em função desta peculiaridade, a escrituração, registro, negociação e aposentação dos CBIO são atualmente regulamentados pela Portaria nº 419/2019, do Ministério das Minas e Energia.

Graças a uma regulação setorial bem estruturada e à grande demanda dos agentes econômicos, sejam as distribuidoras obrigadas, sejam aqueles que voluntariamente buscam ativos que contribuam com o avanço da agenda ESG, o mercado de CBIO se encontra em franca expansão, com operações realizadas em mercado organizado, perspectiva de expansão para outros setores e até de criação de derivativos (mercados futuros).

Mercados voluntários

Nos mercados voluntários de créditos de carbono no Brasil, a realidade ainda é bastante diversa. Os mercados voluntários se diferenciam dos obrigatórios justamente por serem movimentados por transações espontâneas, realizadas por razões várias, tais como o comprometimento consciente, a busca por consolidação de imagem e reputação, a listagem de papéis sob selos de sustentabilidade emitidos por bolsas no âmbito da autorregulação (ICO2 B3, ISE B3, DJ Sustainability Index etc.) ou, ainda, exigências estabelecidas por matrizes ou contrapartes no exterior submetidas a legislações mais rigorosas.

Nos mercados voluntários de carbono no Brasil, a falta de regulamentação de standards mínimos, assim como a grande pulverização de metodologias e padrões de certificação, representam os maiores obstáculos à sua expansão.

A ausência de padronização dificulta a comparação entre os diversos créditos de carbono ofertados, assim como a efetiva precificação desses ativos, propiciando assimetrias de informação e riscos de seleção adversa[9] que podem, a longo prazo, minar a efetividade desse mecanismo como forma de compensação de emissões. A falta de regulamentação também conduz à fragmentação dos ambientes de negociação, o que gera ineficiências e reduz a transparência na formação dos preços.

Em última análise, a lacuna do arcabouço regulatório acaba por retardar o próprio desenvolvimento do mercado voluntário de créditos de carbono como instrumento de financiamento e monetização, por excelência, dos projetos de conservação e restauração ambiental, assim como de redução de emissões de um modo geral, com grande potencial de aproveitamento no Brasil.

Projeto de Lei nº 528/2021

Com o intuito de suprir essa lacuna, encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 528/2021, cuja última versão corresponde à emenda substitutiva apresentada pelo deputado Zé Vitor (PL/MG).

O projeto adota na sua maior parte boa técnica regulatória ao propor diretrizes para a criação de um Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), baseado na lógica de cap and trade, mediante quantificação de limites e alocação de Direitos de Emissão de Gases de Efeito Estufa (DEGEE) entre os diversos setores da economia, de forma gratuita ou por meio de leilões.

É importante destacar que esse mecanismo não apresenta natureza tributária, mas sim regulatória-ambiental, com base na criação de um dever administrativo de redução ou compensação de emissões, sob pena de multa em caso de descumprimento.

A estipulação de um tal dever administrativo encontra amparo no direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e no correspondente dever, a cargo do Poder Público e da coletividade, de defendê-lo, ambos consagrados no art. 225 da Constituição Federal[10].

Este também é o entendimento predominante no exterior para mecanismos análogos, a exemplo da recente decisão da Suprema Corte do Canadá que declarou constitucional o Greenhouse Gas Pollution Pricing Act de 2018, considerando que, não obstante a linguagem popular frequentemente rotulá-lo como “carbon tax”, não se está diante de um tributo e sim de um preço por excesso de emissões[11].

O PL nº 528/2021 também estabelece diretrizes para a criação de um Sistema Nacional de Registro de Redução e Compensações de Emissões (SNRC-GEE), com objeto de consolidar o registro de projetos de redução de emissões e dos correspondentes créditos de carbono gerados (as denominadas “Reduções Verificadas de Emissões”ou “RVE”).

O SNRC-GEE reforçará a credibilidade e segurança das operações com esses ativos, favorecendo inclusive a exportação dos RVE, na medida em que servirá como instrumento de integração entre a contabilidade nacional e internacional das transações com ativos originados a partir do país.

O mercado voluntário de créditos de carbono também será amplamente estimulado pela aprovação do PL nº 528/2021, ao passo que a entidade gestora do SNRC será detentora de competência legal para credenciar padrões de certificação para os RVE originados pelos diferentes tipos de projetos, os quais poderão ser inclusive utilizados para o cumprimento de metas corporativas voluntárias de redução, no Brasil ou no exterior, mesmo fora dos acordos e protocolos internacionais.

A aprovação de padrões de certificação por um órgão oficial, assim como o cadastramento e fiscalização dos auditores independentes, tende a endereçar questões de assimetria de informação e seleção adversa, impulsionando a confiança dos agentes no mecanismo e a expansão do mercado voluntário.

A criação de um registro centralizado para os RVE também tem o mérito de reduzir os riscos de dupla emissão ou dupla contagem de créditos, ao garantir que esses ativos sejam identificados com números de série e permanentemente retirados de circulação do mercado, após os seus adquirentes os utilizarem para a compensação de emissões.

Aspectos tributários do PL nº 528/2021

Um ponto que merece ser aprimorado no PL nº 528/2021 é o regime de tributação (art. 10). Se por um lado a proposta de isenção ampla e irrestrita de tributos federais (IRPJ, CSLL, PIS e Cofins) sobre operações envolvendo RVE parece de difícil aceitação no atual cenário de restrição fiscal, por outro, não é desejável que uma alta tributação ou, pior do que isso, a insegurança jurídica acerca do tratamento tributário aplicável (como ainda ocorre no RenovaBio), atrapalhem o desenvolvimento desses mercados e reduzam a sua potencial contribuição para os esforços de descarbonização.

A fim de solucionar essa questão, sugerimos adotar um regime de tributação simples, claro e racional para todos os agentes econômicos envolvidos, e que favoreça com um menor custo fiscal principalmente os originadores dos créditos de carbono.

Para a primeira operação de alienação de RVE pelo titular originário, sugere-se adotar um regime de tributação pelo imposto de renda exclusivamente na fonte à alíquota de 15% (em harmonia com a alíquota aplicável ao CBIO, nos termos do art. 15-A da Lei nº 13.576/2017), combinado com uma isenção de CSLL, PIS e Cofins, inclusive para evitar as intermináveis controvérsias a respeito da possibilidade de tomada de créditos no regime não-cumulativo.

Já para as operações subsequentes de negociação de RVE no mercado secundário, quando realizadas em bolsas, balcões organizados ou demais plataformas digitais autorizadas pela autoridade competente, sugere-se estabelecer o mesmo tratamento tributário dispensado às aplicações de renda variável, ou seja, imposto de renda retido na fonte à alíquota de 0,005%, com tributação do ganho pelo imposto de renda à alíquota de 15% e pela CSLL à alíquota normal (vide art. 2º da Lei nº 11.033/2004).

No que se refere ao PIS e à Cofins, sobre essas mesmas operações subsequentes, seria desejável prever um regime unificado, abrangendo tanto o cumulativo quanto o não-cumulativo, sem direito a créditos tributários, com alíquota total de 4,65% incidente exclusivamente sobre o ganho apurado nas operações de negociação de RVE, nos mesmos moldes já estabelecidos para as operações com participações societárias (vide, nesse sentido, o § 14 do art. 3º da Lei nº 9.718/1998 combinado com o inc. XIII da Lei nº 10.637/2002 e o inc. XXX do art. 10 da Lei nº 10.833/2003).

Seria importante também que o PL nº 528/2021 reconhecesse a dedutibilidade integral das despesas de aquisição de RVE, tanto na apuração do lucro real quanto da base de cálculo da CSLL, mesmo para operações realizadas no âmbito do mercado voluntário, desde que tenham por objeto RVE emitidos conforme padrões de certificação e registro que atendam aos requisitos da lei. A dedutibilidade deveria ser integral ou, alternativamente, limitada a um percentual máximo do lucro líquido apurado pelo contribuinte no exercício, caso se perceba a necessidade de redução do custo fiscal imposto pela medida.

A combinação de um regime tributário simples, claro, racional e de baixo custo fiscal para os emissores originários, com o reconhecimento da dedutibilidade das despesas de aquisição dos RVE aderentes aos parâmetros legais, produziria o efeito virtuoso de fomentar e, ao mesmo tempo, organizar os mercados voluntários em torno de ativos ambientais que, comprovadamente, gerassem externalidades positivas para a sociedade em termos de efetiva redução ou remoção de emissões justificando, assim, o incentivo fiscal concedido aos contribuintes produtores.

É importante que os parlamentares estejam atentos quanto à criticidade do aspecto tributário para o sucesso dos objetivos almejados pelo PL. A sugestão acima busca oferecer uma solução mais equilibrada, como alternativa à simples desoneração total, no intuito de obter a adesão do Poder Executivo, em especial do Ministério da Economia e, com isso, evitar um eventual veto da parte fiscal.

Com efeito, o veto seria o pior dos mundos não somente pela imposição de uma maior carga tributária sobre os originadores, mas também pela situação de incerteza e insegurança jurídica que acarretaria para as operações nesse novo mercado, infelizmente algo ainda bastante comum em nosso sistema tributário complexo e obsoleto, que apresenta graves dificuldades para se ajustar a arranjos inovadores.

Mercados organizados e demais plataformas de negociação

No que diz respeito às bolsas, mercados de balcão, plataformas digitais e demais ambientes de negociação dos RVE, parece elogiável o objetivo sinalizado pelo PL nº 528/2021 de promover a interoperabilidade entre o SNRC e esses diversos sistemas.

Nada obstante, seria desejável que o mesmo PL também indicasse expressamente a entidade responsável pela autorização e fiscalização do funcionamento de tais plataformas de negociação, sendo nesse sentido a CVM uma escolha natural e adequada, em virtude da reconhecida expertise técnica na regulação de bolsas e mercados de balcão.

A importância de uma regulação mínima sobre as plataformas e ambientes de negociação não pode ser desprezada, considerando os grandes volumes projetados para esses mercados e o papel fundamental dessas estruturas em garantir a transparência das transações, reduzir assimetrias de informações e otimizar a descoberta do preço justo ao facilitar a interação entre vendedores e compradores.

Bolsa Verde do Rio de Janeiro

Algumas praças já perceberam a relevância do tema e se lançaram à frente. O caso mais emblemático é o do município do Rio de Janeiro, que a partir do Decreto nº 48.995/2021 iniciou estudos de viabilidade para atração de investimentos voltados para a implementação de bolsas ou plataformas de negociação de créditos de carbono e outros ativos sustentáveis.

A Cidade do Rio guarda uma série de vantagens comparativas por ter sido a sede da governança global sobre mudanças climáticas desde a Conferência Rio 92, hospedar as administrações das maiores empresas do setor de óleo e gás, agências reguladoras, bancos públicos de fomento, além de deter todo um parque científico e educacional voltado para a pesquisa e disseminação do conhecimento que será essencial para superar os desafios das mudanças climáticas e da transição energética.

Nada impede, porém, que outras cidades e estados da federação se unam à iniciativa do Rio, atuando em rede para acelerar a implementação e desenvolvimento dos mercados de crédito de carbono e finanças sustentáveis no Brasil. Sejam todos bem-vindos à nova revolução industrial, vamos juntos.

[1] Nesse sentido, vide SCHWAB, Klaus; MALLERET, Thierry. Covid-19: The Great Reset. Genebra: Forum Publishing, 2020.

[2] IPCC, 2021: Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Disponível em: <https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg1/#FullReport>.

[3] Comissão Europeia. Questions and Answers – Emissions Trading – Putting a Price on carbon. Bruxelas, 2021. Disponível em: <https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/qanda_21_3542>. Vide também MERCURO, Nicholas; MEDEMA, Steven G. Economics and the Law: from Posner to Post-Modernism and Beyond. Nova Jersey: Princeton, 2006, pp. 236-239.

[4] NORDHAUS, William. “Climate Clubs: Overcoming Free-Riding in International Climate Policy.” American Economic Review, 105 (4): 1339-70.

[5] DELBEKE, Jos; DOMBROWICK, Piotr; VIS, Peter. Key Issues for the coming trade and climate debate. In: STG Policy Brief. European University Institute, 2021. Disponível em: <https://cadmus.eui.eu/handle/1814/71572>.

[6] Democrats Call for a Tax on Imports From Polluting Countries. New York Times, 14 jul 2021. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2021/07/14/climate/border-carbon-tax-united-states.html>.

[7] China to Quickly Expand Top Carbon Market to Add More Polluters. Bloomberg, 14 jul 2021. Disponível em: <https://www.bloomberg.com/news/articles/2021-07-14/china-to-quickly-expand-top-carbon-market-to-add-more-polluters>.

[8] Sobre títulos de legitimação, também denominados títulos de crédito impróprios, vide ASCARELLI, Tullio. Teoria Geral dos Títulos de Crédito. Campinas: Servanda, 2013, pp. 307 e ss.

[9] Sobre os problemas da assimetria da informação e da seleção adversa, e seus efeitos prejudiciais para os mercados, vide AKERLOF, George A. The Market for “Lemons”: Quality Uncertainty and the Market Mechanism. The Quarterly Journal of Economics, Vol. 84, No. 3. (Aug., 1970), pp. 488-500.

[10] CF/1988: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

[11] Suprema Corte do Canadá. 2021 SCC 11, julgado em 25.03.2021. Disponível em: <https://www.scc-csc.ca/case-dossier/cb/2021/38663-38781-39116-eng.aspx>.

GABRIEL DEMETRIO DOMINGUES – Advogado do BNDES e mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ.

Fonte: Jota

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